segunda-feira, 1 de junho de 2009

50 Quilómetros de Bike



Nove e quinze da manhã e o grupo já está reunido. As bikes estão preparadas, o que lhes suceder pelo caminho logo se resolve. A manhã está belíssima, nuvens muito altas equilibram a temperatura. Teremos uns 18º com um vento variável, que lá mais para o fim da manhã irá soprar fraco de SSW.

Começamos a rolar. Por cima de uma ou outra palavra, que se troca no silêncio próprio das manhãs de Domingo, o asfalto devolve-nos o som da batalha que a borracha dos pneus trava com ele. | 20Km/h;132ppm|.
O caminho agora é de pedra calçada e aproxima-se um passadiço em lajedo onde em toda a sua largura corre uma água cristalina de dois dedos de altura. Uma prenda da Primavera chuvosa que a Ribeira do Rio Seco nos oferece. Temos gozo em atravessá-la. As rodas molhadas patinam à saída, na ligeira subida. Mais uns poucos quilómetros e o asfalto desaparece. Começamos a estar no nosso meio. Agora rola-se sobre areia firme e sulcos de lama ressequida, que outras rodas traçaram quando os trilhos estavam vulneráveis pelas chuvadas. Os trilhos de mato estão já à nossa frente. A marcha torna-se mais lenta. É andar sobre pedras. Dos lados ramos que se estendem quase a tapar-nos o caminho fustigam-nos os braços e pernas. O trilho abre-se mais. Aqui a Primavera manifesta-se em esteiras de flores silvestres de várias cores – roxas aqui, ali brancas e amarelas. |7,5Km/h;140ppm|. Agora sobe-se. Ainda pedregoso, o trilho desafia a um maior esforço. Resvala-se nos afloramentos calcários, arredondados por centenárias erosões. A melhor relação de transmissão da pedaleira à roda está introduzida. |6.0Km/h;160ppm|. Venceu-se a subida. Mais plano o trilho agora só oferece pequenos obstáculos. A velocidade aumenta. |20,2Km/h;132ppm|. Dispersos tufos de rosmaninho já bem desenvolvidos e o tomilho que por vezes se esmaga por baixo das rodas pulverizam o ar de odores que tocam rápido as nossas narinas. Mais veloz que o embalo das bikes vêm à memória momentos de Semana Santa. Igrejas atapetadas de rosmaninho criavam místico odor, de roxos ramos pisados em noites de Quinta-feira Santa.
Pedala-se em boa cadência. Sua-se. Os trilhos agora são mais suaves e arenosos. Algumas descidas pouco acidentadas. |32Km/h;140ppm|. As rodas das Bikes a rasgar as areias, produzem um som como o de muitos a comer pãezinhos estaladiços. O trilho agora afunila e o andamento torna-se difícil. É preciso afastar as arbustivas que se adensam. Quando nos damos conta estamos numa zona menos fechada mas sombria. As copas das alfarrobeiras unem-se no cimo filtrando o sol. Afloramentos de rocha como línguas formam assentos no que parece ser um átrio. Tem magia aquele lugar. Surpreendentemente uma vintena de lírios azuis em plena florescência, com pés de mais de um metro de altura, distribuídos por aquele espaço parece reunida em concílio de Primavera. Certamente discute-se o deserto que é aquele barrocal e a casa próxima, agora abandonada, que lhes permitiu existir para a função que parecem exercer: mútua contemplação da beleza que cada um possui sem interferência dos humanos.
A casa mostra abandono recente. Ainda deve conter memórias pairando pelos cantos abandonados. Resto de vidas feitas a conquistar terreno à “despedrega”, a semear uns trigos para dar pão, por entre figueiras, amendoeiras e alfarrobeiras. De noites ao luar de Agosto até vir a frescura do “sereno” ou o sono a apertar mais. De histórias de moiras encantadas, porque as há nessas encruzilhadas ou lugares sombrios convidando ao desencanto. |15Km/h;144ppm|. Da sina que a cigana de passagem ditou à Josefa. Dos cascos que naquela noite de Novembro se ouviram. Coisa de arrepiar a alma e o corpo. Em recurso de salvação bradava-se um “valha-nos Deus”e rezava-se uma lenga-lenga piedosa, dita a tremer, pois havia de tornar mais seguras as trancas das portas e janelas. Daquele Verão de seca horrível que dava para formar piquetes de gente sedenta junto aos poços municipais, e até ter de se espremer e chupar pela manhã as folhas carnudas das “piteiras” – figueiras da Índia – (1), ainda frescas da noite, para dentro das bocas e gargantas secas.

Aproveitou-se para uma pequena paragem ali mais à frente. Bebe-se ou come-se uma barrita energética. Estamos atrás do Cerro do Cabeço. O mais característico duma linha de cerros que ali se adensa em cambiantes de cinza forte, e que nesta zona define a paisagem vista do litoral pela densidade de afloramentos rochosos que exibe em todas as vertentes dando-lhe um ar misterioso. Talvez por isso é lugar de romaria num dia a seguir ao domingo de Páscoa, para se abrirem os folares que laboriosamente foram executados em casa, depois de reunidas as mulheres de mais saber no amassar e estender das folhas de massa. Noutros tempos, por combinação prévia, recorria-se aos fornos que as gentes do campo tinham em suas casas e para lá se dirigiam armadas dos tachos cheios da massa de folar que já tinha feito o tempo de espera adequado. Era assim em muitos lares de Olhão. Raro era o ano que uma chuvada não viesse interromper aquela festa. E era ver aquela gente a correr monte abaixo, no desejo de encontrar o autocarro que os traria de volta. Lamentos de objectos perdidos acompanhavam sempre estas debandadas.

Abalámos. O trilho leva-nos para a banda Sul do monte. Dali a Moncarapacho é um salto, mas o nosso rumo é para Oeste para os trilhos do Barrocal. Barro e Cal. |15Km/h;148ppm|. Barro que sustentou uma indústria próspera de olarias em toda aquela zona. Aprendizes de mestres, mestres de aprendizes, numa sucessão incontável, desde os tempos da ocupação árabe, que produziam uma cerâmica especial, e só neste lugar do Algarve, vidrada a verde para usos mais finos. O oleiro punha-lhe o seu selo.

Os trilhos agora são mais leves pela lisura que vai surgindo, aumenta-se a velocidade. O Ivo e o Tiago põem toda a sua juventude nos pedais. É impossível resistir a um pouco de competição. Mas os mais adiantados já sabem da regra: esperar pelos que ficam mais para trás ou se perderam nas voltas. Nem sempre quem vai a fazer caminho é obedecido. O Cesário para esta função é o melhor. O Ezequiel adianta-se e pára mais à frente empunhando a sua máquina fotográfica que vai disparando à nossa passagem. Ninguém ousa gestos incomuns. |25Km/h;150ppm|. Toda a gente a pedalar bem. Furo! Todos param. Deve ser rápida a mudança da câmara-de-ar. O Miguel oferece-se para dar à bomba. Aproveita-se sempre quem tem a melhor. Estas paragens dão sempre oportunidade a um “mudar de águas” ou a puxar do bidon para uma golada de água.
Voltamos a arrancar, os trilhos estão bons e a velocidade cresce ao ritmo da pedalada e da intensidade nos pontos de apoio, os pedais, que invisíveis desenham autênticas parabólicas no ar. |32Km/h;168ppm|. A velocidade diminui. As Alfarrobeiras que ladeiam o caminho começam a vergar ao peso dos seus cachos de vagens ainda verdes, mas adultas no tamanho. Impressiona como as águas de Abril e Maio deram vida a tanta vegetação. Os ramos das romãzeiras que se vão encontrando aqui e ali estão floridos de vermelho. Belos frutos hão-de dar. Tomamos a estrada asfaltada. Dá para tirar as mãos do guiador, espreguiçar os braços ou deixá-los ir como asas, no embalo, porque é a descer. Já virámos para o trilho de areia. Entre muros temos agora uma forte descida com muitas pedras soltas. |35Km/h;132ppm|. Levantam-se as nádegas do selim por causa da batida, que só chega amortecida aos braços pelo amortecedor da frente. Começa-se a travar pois a saída do caminho faz-se abruptamente para o asfalto da estrada. As rodas derrapam. Toca-se um pouco o travão da frente para ajudar. Pode sempre haver a surpresa de algum trânsito. «Está livre» diz quem já chegou. A adrenalina baixa. Se aqui houvesse Jacarandás tínhamos nesta altura do ano um merecido tapete de azul para nos receber.
Agora é só ir serpenteando mais alguns quilómetros por caminhos de asfalto, alguns muito recentes, até se chegar à Rotunda mais oriental da cidade donde os treze BTT, satisfeitos, tomam o rumo de casa para o almoço que os espera.


Faro, 26 de Maio de 2008
Vasco Vaz-Velho





(1) - Supõe-se que foi Cristóvão Colombo que as trouxe do México donde são originárias e, diz-se da Índia, já se sabe porquê.

Nota: ppm = pulsações cardíacas por minuto.

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